terça-feira, 24 de novembro de 2009

ÁGUA E ÓLEO SE MISTURAM

Água e óleo não se misturam! Quem duvidaria de uma afirmação como
essa, atestada, como se vê, por empresários, políticos, sociólogos,
religiosos e cientistas? No entanto, foi esse o resultado - uma
mistura de água e óleo - de uma pesquisa realizada pelo físico-químico
Ric Pashley, da Universidade Nacional da Austrália, conforme noticiou
em 19 de fevereiro de 2003 a New Scientist, revista norte-americana de
divulgação científica.



A importância de misturar água e óleo

Para conseguir a façanha, Pashley colocou água e óleo num recipiente e
o submeteu a sucessivos congelamentos e descongelamentos, processo
pelo qual pode-se retirar gás de um líquido. Quando quase todo o gás
dissolvido na água foi extraído, aconteceu o inacreditável: "A mistura
ocorreu espontaneamente, formando uma emulsão embaçada. Eu fiquei tão
surpreso como qualquer pessoa", declarou Pashley. Como costuma
acontecer nessas ocasiões, para não perder a primazia do feito, ele só
divulgou o resultado da pesquisa depois de sua publicação numa revista
científica de renome, o Journal of Physical Chemistry B, vol 107, p
1714.

Ainda é preciso que outros pesquisadores repitam a experiência e
confirmem o seu resultado, ou seja, que essa mistura efetivamente
ocorre, nessas condições. Uma vez confirmada, no entanto, as
conseqüências dessa pesquisa são imprevisíveis - não pelo ineditismo,
mas por suas implicações científicas.


Qual a importância disso para a ciência?

A impossibilidade da mistura da água e óleo tem justificativas
solidamente assentadas em princípios físicos e químicos. Se a mistura
ocorre, restam aos físicos e químicos duas incômodas opções: a
primeira consiste em buscar uma nova explicação que justifique a
mistura e o possível erro das explicações anteriores; a segunda opção
é encarar a possibilidade de haver incorreção em algum dos princípios
físicos que garantem ser essa mistura impossível. A dramaticidade de
qualquer dessas duas alternativas está na dificuldade de se imaginar o
que pode haver de errado. Mal comparando, a confirmar-se a pesquisa de
Pashley, os cientistas vão se sentir como pais que descobrem uma
conduta reprovável num filho exemplar e perguntam-se perplexos: "onde
foi que erramos?"

Para entender a dificuldade de encontrar esse "onde foi que erramos"
vamos recorrer a uma síntese de duas explicações atuais para a
impossibilidade da mistura de água e óleo. A primeira aparece numa das
citações que encabeçam o texto, do professor Marcelo Brito Carneiro
Leço. É a explicação mais comum, preferida dos físicos e químicos: a
impossibilidade da mistura decorre da maior afinidade das moléculas da
água entre si, resultante da polarização elétrica dessas moléculas - o
lado do oxigênio é negativo e o lado dos hidrogênios é positivo -, em
contraposição ao caráter neutro (apolar) das moléculas de óleo. Isso
faz com que as moléculas de água se atraiam e se agrupem, o que
"marginaliza" as moléculas de óleo.

A segunda explicação baseia-se em conceitos de termodinâmica e física
estatística: água e óleo não se misturam porque a entropia do sistema
água e óleo não misturados é máxima. Ou seja, a desordem desse sistema
prevalece por ser maior do que a desordem do sistema água e óleo
misturados. Explicando melhor: de acordo com a segunda lei da
termodinâmica, todo fenômeno natural espontâneo tende a atingir um
estado estatisticamente mais provável -o estado de entropia máxima. É
por isso que o calor sempre passa do corpo mais quente para o mais
frio, assim como o perfume de um frasco aberto sempre evapora. O
contrário não ocorre de forma espontânea porque são estados
estatisticamente menos prováveis, nos quais a entropia diminui em vez
de aumentar. Assim, a mistura de água e óleo seria tão improvável
como, espontaneamente, o calor passar do corpo mais frio para o mais
quente, ou o perfume difundido no ar condensar-se e voltar ao interior
do frasco.

São explicações de bases conceituais muito sólidas. Para a física, a
polarização elétrica das moléculas da água é uma certeza quase tão
firme quanto o princípio da atração e repulsão de cargas elétricas. E
ambas explicam a forma como se agrupam as moléculas de água e as
propriedades resultantes, entre as quais os altos pontos de ebulição e
fusão da água e o aumento de volume ao congelar-se (o que contraria o
comportamento da maioria das substâncias). De resto, a segunda lei da
termodinâmica é um dos pilares da física e de toda ciência moderna.

Imaginar que misturar água e óleo abale essas estruturas conceituais
pode parecer absurdo, mas não é. Foram experimentos igualmente simples
que provocaram a revolução da física no início do século XX e deram
origem à física quântica.


O segredo da mistura de água e óleo

A idéia de Pashley, de retirar gases dissolvidos na água para tornar
possível a sua mistura com o óleo, não foi palpite ou revelação. Há
muito esse pesquisador estuda o comportamento de substâncias
hidrofóbicas, ou seja, que não se dissolvem na água, como o óleo. Uma
das propriedades dessas substâncias, descobertas nesses estudos, é a
interação hidrofóbica, fenômeno essencial na formação de inúmeras
proteínas e enzimas. E o óleo é justamente a substância em que a
interação hidrofóbica é mais notável, pois ocorre a distâncias
relativamente grandes.

Na busca de indicações para descrever e explicar essa interação no
óleo, Pashley passou a examinar amostras de superfícies retiradas de
misturas, ou melhor, de não-misturas, de água e óleo. Nessas
superfícies ele descobriu inúmeros pontos semelhantes a bolhas
microscópicas que não eram água nem óleo. Sabendo que sempre há certa
quantidade de gases dissolvidos na água exposta ao ar, Pashley supôs
que esses pontos deveriam ser bolhas microscópicas desses gases,
expulsos da água pelo óleo. Imaginou que, assim como a interação
elétrica entre as moléculas polarizadas da água "marginaliza" as
moléculas de óleo, obrigando-as a agrupar-se na forma de gotas
esféricas espalhadas na água, a interação hidrofóbica entre as
moléculas do óleo deveria "marginalizar" as moléculas dos gases
dissolvidos na água que, como as do óleo, seriam forçadas a se
agruparem nessas microbolhas. Um jogo de cão, gato e rato.

Foi para testar essa hipótese e verificar como se comportariam a água
e o óleo sem os gases dissolvidos que Pashley os extraiu e, para sua
surpresa, obteve a improvável mistura. Curiosamente, essa mistura
mostrou-se bastante estável - não mais se desfez, mesmo quando Pashley
reintroduziu os gases retirados. No jogo do cão, gato e rato, retirado
o rato, cão e gato se uniriam e passariam a viver em eterna harmonia,
mesmo com a volta do rato...


O que fazer com essa descoberta?

A reação inicial dos cientistas procurados pela New Scientist para
opinar sobre essa pesquisa foi de cautela e incredulidade. Embora
Pashley seja um pesquisador de prestígio na área, ainda se espera que
outros refaçam seu experimento e confirmem o resultado. Ao que parece,
a esperança de todos - ou quase todos - é de que tudo tenha sido um
alarme falso, um equívoco, pois são enormes os desafios conceituais
propostos pela confirmação desse resultado.

Do ponto de vista tecnológico, porém, essa descoberta apresenta novas
e promissoras possibilidades. A mistura, ou melhor, a emulsão de água
e óleo, sempre foi possível com o auxílio de uma substância
intermediária, chamada de tensoativa. As substâncias tensoativas têm
uma estrutura molecular que lhes dá afinidade tanto com a água quanto
com o óleo. O exemplo mais comum é a gema do ovo, substância
tensoativa que permite uma apreciada emulsão de água e óleo: a
maionese. Se a técnica resultante dessa pesquisa for confirmada, será
possível misturar água e óleo sem o auxílio de substâncias
tensoativas; ou seja, será possível fazer maionese sem gema de ovos. É
provável que essa não seja uma boa aplicação, mas certamente há
outras. Muitos medicamentos, cosméticos, alimentos e outros produtos
químicos baseados na emulsão de água e óleo se beneficiarão com essa
nova técnica.

Agora novas pesquisas estão sendo realizadas em laboratórios de todo
mundo. Se o resultado se confirmar,certamente os cientistas saberão
enfrentar mais essa armadilha da natureza. E espera-se que os
políticos, talvez os mais entusiasmados apreciadores desse bordão,
encontrem um substituto a altura...


Alberto Gaspar
(Doutor em Educação pela USP, Prof. de Física da Unesp-Guaratinguetá e
autor da Ática)

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